Por David Alves Gomes
Após o resultado das eleições
presidenciais confirmando a vitória da presidenta Dilma (PT), recebi a mensagem
anônima abaixo pelo Whatsapp. Pelo que escreveu, o autor provavelmente é um
médico:
Prezados amigos,
enfim terminou mais uma eleição. Serão mais 4 anos de corrupção, impunidade,
aparelhamento do Estado e tudo mais que fomos contra quando resolvemos ir às
ruas para protestar. Porém ficou claro que quem tem o poder de decisão é o
pobre, miserável, que mal sabe assinar o nome, não lê jornal e não tem
consciência política, facilmente manipulado por programas sociais que o
aprisionam pelo estômago. Diante disso, peço aos amigos um grande favor: não me
peçam pra ajudar nenhum pobre. Não me peçam receitas médicas ou pedidos de
exames ou ajuda para internamento no SUS, isso porque o povo confirmou que a
saúde está muito boa, procurem as filas do sus e os médicos cubanos que
rapidamente resolveram seus problemas. Não me entreguem currículos para
arranjar emprego, procurem o Senae o Pronatec, pois para o povo as vagas de
emprego estão sobrando e com o crescimento econômico vão ter muito mais vagas.
Não me peçam dinheiro pra ajudar os mais necessitados, pois pago todos os
impostos e o povo brasileiro julgou que a verba roubada dos cofres públicos é
insignificante e que não faz falta ao povo. É dessa forma que manifestarei
minha indignação pelos próximos 4 anos.
Depois da manifestação do possível
médico, elaborei uma carta aberta. Quem sabe a resposta chega até ele.
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Médico cubano do Programa Mais Médicos sendo xingado por médicas brasileiras |
CARTA ABERTA A UM MÉDICO:
Primeiramente, venho lhe dizer que as
manifestações de junho de 2013 surgiram com reivindicações relativas à
mobilidade urbana no Brasil. Após, as manifestações tiveram reivindicações
genéricas, como o combate à corrupção, mas muitos também levantaram bandeiras
como a luta pela legalização do aborto, o combate à homofobia, a autonomia do
Ministério Público, o combate ao genocídio do povo negro e inúmeras outras
pautas. Por favor, não restrinja as manifestações de junho de 2013 ao combate
contra a corrupção, muito menos ao objetivo de tirar o PT do poder. Junho de
2013 não se resume ao seu umbigo. Mas, ainda assim, se formos falar de
corrupção, não devemos esquecer das corrupções perpetradas pelo PSDB, inclusive
pelo Aécio Neves, como o aeroporto de Cláudio, o helicóptero carregado de
cocaína, o mensalão mineiro e todos os outros casos de corrupção que foram
arquivados sem julgamento por influências do PSDB. O PT não criou a corrupção
no Brasil. Dizer isso soa bastante ingênuo ou leviano (para se utilizar de um
termo com que o Aécio Neves gosta muito, talvez por uma imensa identificação
pessoal).
Você diz: “ficou claro que quem tem o
poder de decisão é o pobre, miserável, que mal sabe assinar o nome, não lê
jornal e não tem consciência política, facilmente manipulado por programas
sociais que o aprisionam pelo estômago”. É necessário pontuar algumas coisas: o
programa Bolsa-Família obriga às crianças beneficiárias frequentarem a escola,
o que permite que tais famílias rompam com a tradicional disposição social
brasileira: a falta de mobilidade social e o acesso à educação formal, quando
milhares de crianças teriam que trabalhar e deixar de estudar para aumentar a
renda da família. Acredito que você não trabalhou quando criança. Falo em
educação formal porque existem a educação popular e a também chamada educação
doméstica, a qual parece que você não adquiriu quando desrespeitou milhares de
famílias brasileiras por não possuírem um alto nível de renda e um curso
superior. A sua fala traz um imenso preconceito de classe social: será mesmo
que não possuir uma educação formal restringe a capacidade de discernimento e
inteligência de um indivíduo? Será mesmo que possuir um alto grau de
escolarização garante essa capacidade? Você é a prova viva de que a graduação
não traz inteligência. Vou fornecer-lhe, de forma gratuita, uma pequena aula
sobre a formação social do povo brasileiro.
O Brasil formou-se basicamente através
da união de três povos: portugueses, índios e escravizados africanos (falo
“escravizados” e não “escravos”, porque os negros não são essencialmente
“escravos”, apesar de a elite brasileira considerar como sua propriedade a sua
empregada doméstica, que agora possui direitos trabalhistas por causa dos
“petralhas”). Claro que ainda tivemos as imigrações europeias, japonesas etc,
mas em menor número. Contudo, essa união não fora nada harmoniosa, o Brasil
construiu-se com a dizimação dos povos indígenas e com a subordinação de povos
africanos ao trabalho forçado. A miscigenação brasileira, que muitos exaltam, surgiu
inúmeras vezes através do sistemático estupro de mulheres negras por parte dos
seus senhores. O antropólogo Osmundo Pinho afirma que a construção da nação
brasileira foi realizada através do sexo, através de uma estrutura de
conjuntura que reificava o corpo negro e dominava o indivíduo através de uma
biopolítica nos termos de Foucault: basicamente o controle da vida do indivíduo
através do controle do seu corpo, sendo o sexo o caminho para tal. Caso essa
passagem tenha ficado um pouco difícil para a sua compreensão, sugiro a leitura
de História da Sexualidade do filósofo Michel Foucault. Você pode estar se
perguntando: “para quê esse idiota está escrevendo tudo isso?” Veja bem,
compreender, ainda que de forma resumida, a estruturação social do povo
brasileiro é necessário para entender o presente e escolher caminhos para o
futuro. A história do Brasil foi marcada pela subordinação das alteridades das
chamadas minorias: mulheres, negros, índios, homossexuais, não cristãos etc.
estavam sempre subordinados a um padrão: homem, branco, heterossexual e
cristão. É importante ressaltar também que a herança escravocrata, aliada ao
racismo, manteve e mantém a maioria dos pobres com cor definida: a cor negra.
Dessa forma, não permitir ou
deslegitimar o voto de pessoas pobres atende não somente a um projeto político
elitista, mas também racista. A sua concepção de inferioridade intelectual dos
pobres está embutida desde quando você talvez se autodenomine “doutor”, somente
por ser um médico. O título de “doutor”, na atualidade, somente é atribuído a
quem fez doutorado (e mesmo assim no âmbito acadêmico), apesar de médicos e
advogados se autodenominarem “doutores”, mesmo sem possuírem essa titulação
acadêmica, apegando-se a um decreto da época do Imperador Dom Pedro I (um
evidente senso de superioridade e nobreza). Contudo, essas duas profissões
tradicionalmente elitistas estão sofrendo rasuras com o governo do PT. Com a
adoção das cotas raciais, um negro pobre pode estudar medicina ou direito em
uma universidade federal. As cotas não são a solução para a desigualdade social
e racial no ensino universitário, mas funcionam como um importante paliativo,
pois o ensino básico, ao ser ampliado, fora criminosamente sucateado para que a
população pobre não ascendesse socialmente. A luta que devemos levantar é a da
melhoria no ensino básico e não a perpetuação de uma elite. Se você não lembra
de suas aulas de História, quando o voto no Brasil não era universal, a elite
se perpetuava no poder e não apresentava qualquer política que possibilitasse,
ainda que infimamente, a ascensão social da maioria da população. Você, com uma
aparente preocupação com o povo brasileiro, não quer nada menos que tutelá-lo:
aquele “ignorante” que você fornecia com aparente bom grado uma receita médica,
não votou em seu candidato. Você tem ojeriza a um pobre, essa é a verdade. Os
médicos cubanos possuem uma preocupação social muito maior do que você. Aliás,
a medicina cubana é reconhecida internacionalmente, inclusive neste momento com
o reconhecimento da OMS à grande atuação dos médicos cubanos no combate ao
ebola. Pelo que você escreveu, você descartou todo o seu juramento que fez
quando se formou em medicina, pois não está preocupado com a população, quer
apenas possuir os seus altos rendimentos, pagar os impostos que tanto enfatiza,
e tentar perpetuar no poder um governo elitista, de privatizações, de arrocho
salarial, de alto desemprego. Podemos fazer todas as críticas ao atual governo
(inclusive eu as faço de forma bastante incisiva e que me fizeram votar nulo
por duas eleições), mas ele vem promovendo uma distribuição de renda e reduzindo,
ainda que de maneira bastante insuficiente, a desigualdade social e racial que
foi construída desde a formação do povo brasileiro. Existem muitos problemas,
até porque o PT está aliado ao grande capital (só a direita histérica acredita
que o PT é comunista), mas as melhorias pontuais do atual governo ainda assim
são imprescindíveis. São essas pequenas melhorias que a classe média e a elite
brasileira se incomodam. Para você, talvez seja difícil ser colega de um médico
preto não é mesmo? Seja cubano ou brasileiro.